Estamos familiarizados com as irritantes atualizações de sistemas de software que perturbam os nossos computadores e smartphones, acreditamos nós, funcionais. Normalmente, começa com um alerta para a necessidade de atualizações ou poderemos ter problemas de segurança ou bloqueios por incompatibilidades com outras aplicações e sistemas operativos. Nestes casos costumamos depararmo-nos com três opções: substituir o dispositivo por uma versão melhorada, de forma a evitar a dita atualização; resistir à mudança e aceitar que iremos começar a ter alguns problemas e perturbações até ficarmos desesperados; ou fazer a atualização rapidamente, de modo a termos o mínimo de disrupção nas nossas aplicações preferidas e proteger os nossos arquivos e escolhas.
Os dilemas associados à metáfora anterior estão presentes no nosso quotidiano mais vezes do que nos preocupamos em pensar, quanto mais admitir. Afinal de contas, os métodos de governance levam-nos a fazer escolhas semelhantes, como quando votamos ou nos integramos numa forma ou outra de ativismo. As sociedades desenvolvem as suas dinâmicas intrínsecas, preferindo sempre estabilidade e previsibilidade. Os contratos sociais são o padrão nobre utilizado para obter esses pacíficos objetivos.
Entretanto, temos de admitir que vivemos numa era de enorme disrupção. Somos lembrados disso com frequência. Pelas mudanças nos padrões meteorológicos resultantes das alterações climáticas, pelos políticos populistas que desdenham das regras estabelecidas ou pela criação de novas formas de trabalho pela automação e robotização.
A Covid-19 é ela também uma forte lembrança da nossa vulnerabilidade face a certas disrupções. Mas também uma confirmação do enorme progresso coletivo que fizemos desde que a Gripe Espanhola matou um número estimado de 50 milhões de pessoas há um século. Os vírus viajam hoje pelo globo mais rapidamente devido à nossa imensa capacidade para o comércio e a nossa enorme conetividade; o conhecimento sobre como agir ou reagir está disponível de forma instantânea; a demonstração da nossa dependência mútua nunca desafiou tanto os comportamentos egoístas e é capaz de sancionar fortemente os medíocres. Por razões como as expostas acima, a Covid-19 impõe-nos um reinício.
A atual crise, que já provocou uma das contrações económicas mais drásticas dos tempos modernos, levou cerca de três semanas a atingir as dramáticas quebras nas transferências económicas atingidas pela Grande Depressão em três anos.
A maior parte dos países em desenvolvimento depende de rendas externas, numa combinação de exportação de bens, turismo, investimentos bem como remessas: é esperado o colapso de todos. As receitas governamentais estão ligadas ao sector formal da economia. Também a receita fiscal vai cair enquanto as transações informais serão purgadas pelas regras do distanciamento social imposto pela Covid-19. Em resumo, quanto mais achatado se quiser a curva do contágio, mais se terá de se bloquear economicamente um dado país. A enorme folga fiscal necessária para mitigar a profunda recessão que se seguirá é inalcançável.
Na realidade, o acesso aos mercados financeiros internacionais tornar-se-á proibitivo para os países em desenvolvimento, enquanto credores e investidores correrão para a segurança dos ativos emitidos pelas economias centralizadas. Os que tiverem capacidade para imprimir dinheiro e distribui-lo em pacotes de incentivos históricos, com base na política do ‘custe o que custar’, ganharão.
Por outras palavras, no exato momento em que os países em desenvolvimento precisam de gerir a pandemia, a maior parte viu a sua folga fiscal evaporar-se. Quando mais precisam de acesso ao financiamento externo, as portas fecham-se. Podemos, por exemplos, testemunhar o paradoxo das agências de rating, neste momento, empurrarem os mercados emergentes e periféricos ainda mais para o nível ‘lixo’, enquanto fingem não ver o que se passa com os países da OCDE com indicadores de contração e indisciplina fiscal similares.
Para dar aos países capacidade financeira para achatarem a curva, é necessário um nível de apoio financeiro que não será viável com as abordagens existentes e a forma de agir precavida das organizações internacionais. No fundo, a Covid-19 lembra-nos que para se ter saúde em todo o lado é preciso a proteção de todos.